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domingo, 13 de outubro de 2019

Um Hemingway sem unanimidade




Dentro da obra relativamente vasta de Ernest Heminway, “Do outro lado do rio, entre as árvores”, publicado em 1950 é, quase um caso à parte, um divisor de águas. Só não podemos chama-lo assim definitivamente, porque sua última obra-prima, “O velho e o mar”, lhe sucede em dois anos.
Em muitos artigos e ensaios a respeito do escritor, esse livro  sequer é lembrado. A preferência da crítica e dos leitores sempre recai sobre “Por quem os sinos dobram”, “Adeus às armas”, “O sol também se levanta”, além da já citada novela a respeito do pescador Santiago. Desses, um ou outro sempre é mencionado em abordagens a respeito de técnicas narrativas, estilo e outros aspectos literários, o que já demonstra sua importância no cânone do século vinte.
Por duas oportunidades eu havia começado a ler “Do outro lado do rio...” (“Across the river and into the trees”), sem, no entanto, passar dos primeiros capítulos. Seus principais assuntos são a guerra, o amor, a velhice, a memória e a morte. Agora, acabo de concluir a leitura da longa epopeia do coronel Richard Cantwell em sua volta a Veneza para uma caçada de patos selvagens. O romance avança no ritmo das digressões e lembranças do veterano militar americano, cuja principal herança são suas aventuras nas principais guerras de seu tempo. Essas lembranças ocupam a quase totalidade dos capítulos. De início, ficamos sabendo que ele está de volta a Veneza para uma caçada, e que tem sérios problemas cardíacos, além de incômodas sequelas e cicatrizes que carrega de uma guerra para outra. É essa toda a bagagem que ele traz até ali, onde, dias antes da caçada, reencontra Renata, seu jovem amor italiano de dezenove anos.
De onde está, em meio à caçada, logo nos primeiros capítulos, ele inicia volta de alguns dias no passado, quando, após chegar a Veneza, convive com alguns amigos, faz passeios, entorna um variado cardápio de bebidas (como boa parte das personagens de Hemingway) e reencontra a amante. Ou seja, o romance traz dois movimentos em direção ao passado, característica de quem está olhando para a vida sob a perspectiva da aproximação do fim. E então, ao longo de 38 capítulos, ele vagueia por Veneza entre hotéis e bares e, na convivência com Renata, relembra inúmeras passagens das guerras de que participou, entre comentários a respeito de fatos das batalhas, da história dos Estados Unidos (como a campanha do General Custer, por exemplo), julgamentos pessoais a respeito de líderes militares que conheceu,  referências ianques específicas e diálogos banais com a namorada. Isso tudo torna o livro uma viagem um tanto arrastada e, muitas vezes repetitiva. Mas vai compondo um lento painel de sua vida e sua personalidade. Chega a ser estranho para os leitores dos nossos dias, que uma jovem de dezenove anos, cheia de vivacidade, se disponha a passar infinitas horas ouvindo relatos de guerra, estratégias e táticas militares. Soa um tanto forçado. E, mesmo se não fosse, ficamos imaginando qual o leitor ideal desse livro. Talvez o americano ou o italiano dos anos 1950´s, que acabou de vivenciar as angústias e perdas de uma guerra mundial e viu o mundo quase devastado pela temerária aventura nazista.
À parte isso, o coronel Cantwell é uma personagem bem construída, com seus conflitos, sua decadência e a consciência da morte que se aproxima. Impossível não vislumbrar um paralelo com a biografia do autor.
O livro parece um tanto longo e, em alguns momentos, falta conteúdo e ligação entre os principais assuntos da obra (a morte, o amor, a coragem, a vida na guerra...). E é um Hemingway. Por isso, ficamos num dilema para decidir se afinal, podemos colocá-lo ao lado da célebre tetralogia acima mencionada. Já li comentários apaixonados a respeito dessa obra. Há quem o coloque como livro de cabeceira, há um contingente de leitores fiéis e apaixonados.
Na ocasião do seu lançamento, o romance ficou três semanas encabeçando a lista dos mais vendidos do “The New York Times”, o que já diz algo a respeito do seu potencial. O grande apelo da obra é sugerido em quadros que ficaram em um passado já distante. Quase sempre eventos de guerra. O velho e decadente coronel, carregando sequelas e cicatrizes das aventuras, não teria muito o que falar a respeito de outros assuntos. Mas também fala de amor e afeto, muitas vezes de uma maneira rude e muito pessoal, com a sua namorada italiana. Que é jovem, bonita e igualmente apaixonada. Sabemos também da impossibilidade desse amor. Da proximidade da morte, que os irá separar. E o livro é um longo adeus.
Será mais um livro de memórias disfarçado? Muito provavelmente. No final da década de 1940, há episódios na biografia do velho escritor que se assemelham a fatos narrados no livro. Um affair marcante em Veneza, e a figura, já cinquentona, de um aventureiro com um passado de aventuras militares e caçadas, dentre outras: o próprio Hemingway.
Enfim, “Do outro lado do rio...” é uma obra para ser lida como uma extensa conversa com um velho amigo em uma mesa de bar. Aí, sim, ela funciona, e deixa entrever o estilo conciso, de frases seguras, imagens despojadas e diálogos espirituosos, que sempre marcou as memoráveis páginas do Papa Hemingway. Não é um livro arrebatador como “O velho e o mar” e os outros três que encabeçam a sua bibliografia. É para ser lido com calma, generosidade e disposição de caçador. Aí se poderá descobrir o sentido das esmeraldas que, em determinado momento do romance, o Coronel recebe de Renata, tornando-se um inesperado guardião daquelas joias.
De qualquer modo o livro sempre estará longe de ser uma unanimidade. O peruano Vargas Llosa, ganhador do prêmio Nobel de literatura, por exemplo, o considera “uma grande bobagem de Hemingway”. Entre o amor e o ódio, neste caso só não há lugar para a indiferença.