O
vereador baiano Sílvio Humberto parece ter conseguido seus quinze minutos de fama
ao denunciar como racista um dos mais de cem livros publicados pelo professor,
filósofo e escritor Alexandre Azevedo. Definitivamente, conseguiu aparecer.
Criar um factoide, bem ao estilo do líder populista carioca César Maia.
Sinto,
mas não vou gastar mais de um parágrafo a quem parece não ter compromisso com uma
análise mais equilibrada dos fatos. Melhor falar a respeito da obra que causou
tanta polêmica. Tenho comigo um exemplar da primeira edição (Editora Paulus,
1995), autografada pelo próprio autor em Ribeirão Preto. Resolvi reler o
livrinho, direcionado às crianças recém-alfabetizadas. Trata-se de um poema de
apenas quarenta versos, que conta a história da menina Fernanda e suas duas
bonecas: uma nova e bonita, e outra velha e feia (feia por ser velha, já gasta,
maltratada, surrada pelo uso, como todos os brinquedos que fazem sucesso com as
crianças). Ao que parece, o distinto vereador sequer se deu ao trabalho de ler
com atenção esses poucos quarenta versos. Deve ter subido à tribuna baseado em
informações alheias. Porque tentei, com toda a isenção possível, enxergar
qualquer traço de racismo oculto nos quarenta pequenos versos, e não consegui.
Aliás,
nós mal ficamos sequer sabendo quais são os atributos físicos das bonecas em
questão. Sabemos que a boneca bonita (que ao final é rejeitada pela menina, que
prefere a boneca “feia”) tem “grandes olhos azulados”. E nada é dito da boneca
feia. Será morena então? Será oriental? Terá aparência indígena? O texto não
diz nada a respeito. Muito menos que a boneca é negra.
Ora, o
racismo é um crime condenável, abominável. Tanto que é inafiançável. Quem irá
contra isso? Mas uma coisa é o crime constatado e provado. Outra é o
oportunismo. Posso falar de cadeira, pois tenho ascendentes africanos e me
orgulho disso. Parece-me que alguns professores e um certo político viram nesse
caso uma oportunidade para se sobressair na mídia. Ou algo que o valha.
Poderia
ser que o ilustrador houvesse sido levado, por algum motivo inconfessável, a
desenhar uma bonequinha negra – o que também não ocorreu – mas mesmo assim não
seria o caso de acusar o autor do texto. Para quem não sabe, o escritor
dificilmente interfere e dá diretrizes na ilustração e no projeto gráfico da
obra.
Onde
está a liberdade de expressão no estado de Ruy Barbosa, de Castro Alves, de
Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro? É muito simples subir numa tribuna e, em
minutos, condenar uma obra literária, taxando-a de racista, de preconceituosa
ou o que quer que seja. E, dessa maneira, tentar desmerecer um professor de
Literatura com mais de cem livros publicados e mais de vinte anos de trabalho
pela cultura brasileira, levando, de norte a sul do país, uma mensagem de
incentivo à leitura às nossas crianças e aos nossos jovens. É provável que
essas pessoas sequer tenham se preocupado em conhecer melhor a biografia desse
autor. Essas pessoas não fazem ideia das dificuldades por que passa um escritor
que tenta honestamente viver de sua produção literária num país como o nosso,
ainda sem tradição maciça de leitura, mesmo entre adultos com alguma cultura e formação
acadêmica, infelizmente.
Julguem
por si mesmos, senhores, os versos causadores da polêmica, segundo uma nota
assinada pela própria Fundação Palmares:
“Fernanda tem duas bonecas.
Uma é linda de se ver.
A outra, coitadinha, é feinha de doer.
A bonita tem cabelo loiro, todo ele trançado.
Quando se puxa uma corda,
vira a cabecinha para o lado.
A feia tem pouco cabelo,
de tanto que já foi puxado.
Não tem pilha, não tem corda,
não se move para o lado”
Onde está o racismo mesmo? Será que também personagem
com pouco cabelo agora é indício de racismo?
Mas o
Alexandre não está em má companhia, muito ao contrário. Está em companhia, por
exemplo, de Monteiro Lobato. Se houvesse encontrado pessoas tão intolerantes em
sua época, o criador de Emília, Dona Benta e Tia Nastácia, talvez tivesse sido
banido das escolas e das prateleiras das livrarias, deixando de divertir e
instruir milhões de crianças até hoje. Felizmente isso não aconteceu e, apesar
de certas reações paranoicas, ele continua a ser o mais conhecido, respeitado
e querido escritor de livros infanto-juvenis do nosso país.
Graciliano
Ramos, um dos gênios da nossa literatura, foi acusado de antissemitismo.
Joseph
Conrad, escritor de origem polonesa que escreveu algumas obras-primas da
literatura inglesa do século XIX (“Lord Jim”, “Linha de Sombra”, “Coração das
Trevas”), também foi acusado de preconceituoso e racista. Só para ficar na
Inglaterra, temos outro gigante da literatura, Charles Dickens (“Grandes
Esperanças”, “David Coperfield”, “Oliver Twist”, entre tantos outros) que foi
taxado de antissemita por algumas frases dentre aquelas suas dezenas de
milhares de páginas que orgulham a literatura ocidental.
Ah!
Como é fácil fazer barulho em torno do trabalho alheio. Outros grandes autores
poderiam ser lembrados. Mas, para concluir, basta ficarmos com um dos maiores
fundadores da literatura moderna. William Shakespeare. Racista, antissemita e
inimigo do Islã. Sim, também ele foi acusado de racismo porque Otelo era mouro
e tem momentos de fúria, ao receber a notícia da traição de Desdêmona. E porque
Shylock (“O mercador de Veneza”) era um judeu mesquinho.
Melhor
ficar por aqui. O absurdo é muito grande. Mas ele se junta à lista interminável
de aberrações semelhantes do longo da história. Volto a repetir: o racismo é
abominável, inaceitável e indesculpável. Se alguém tiver dúvida a respeito das
ideias que defendo, por favor, dê-se ao trabalho de conhecer alguns dos meus
livros, como “Resgate de Amor”, “A Fúria do Mundo” ou “A estrada de San Martín”.
Porém,
tão importante quanto combater esse execrável chaga da humanidade é saber
reconhecer o racismo onde ele realmente está, distinguindo-o da mera liberdade
da criação literária.