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terça-feira, 19 de setembro de 2017

FAIR PLAY - 2


Chega afinal o grande dia.
Aquele que pode ser o da esperada vingança.
Devolver o 7 x 1 será improvável.
Mas um humilde 1 x 0 já vai dar para desengasgar qualquer garganta verde-e-amarela.
Final da Copa.
O dia da revanche.
O Brasil vem muito bem, com pinta de favorito.
Venceu todos os jogos com pelo menos dois gols de diferença.
Os rivais vêm aos trancos, ainda que sem barrancos.
França e Argentina, dois dos papões, haviam ficado nas semifinais.
Portugal, Bélgica, Espanha e outros candidatos, pouco antes, nas quartas.
O jogo é nervoso. O Brasil domina a partida, tem a posse de bola...
Mas a Alemanha é cirúrgica. Em dois contra-ataques, duas bolas na rede.
O Brasil começa a se perturbar.
Os Europeus atravessam o segundo tempo todo segurando um placar de 2 x 1 a seu favor.
Jogam com tática, disciplina, preparo físico e bom futebol.
O Brasil desce sempre com perigo. O cheiro do empate está no ar. É questão de tempo.
Bola de pé em pé entre os craques amarelinhos, e acaba sempre nas mãos milagrosas de Neuer.
Ou na trave.
Está para acontecer uma grande injustiça. A melhor equipe não vai vencer a Copa, mais uma vez. E lá se vai a vingança...
Tite olha para o banco, desesperado.
Gabriel Jesus está mal no jogo e precisa ser substituído. Depois de uma Copa brilhante, o garoto se cansou. Não aguenta sequer andar.
Roberto Firmino está suspenso.
Ainda bem que ele havia trazido um terceiro centroavante. Contra toda a lógica.
Ele só tem mais uma substituição.
Por que mesmo havia trazido aquele atacante alto do Corínthians? Ah, porque havia sido o maior artilheiro do ano. Estava voando baixo.
E costumava dar muita sorte nos momentos mais improváveis.
Tite respira fundo, fecha os olhos e chama o auxiliar:
"Põe o Jô para aquecer."
"Mas professor..."
"Não tem nada de mais nem meio mais... Eu estou mandando. É ele quem vai entrar."
"Mas professor..."
Não adianta discutir. O professor está tenso. Como nunca se viu antes. O Brasil não pode perder outra Copa. Não para a Alemanha.
É muita humilhação.
Trinta minutos do segundo tempo.
Gabriel e Jô se abraçam na beirada do campo.
A torcida toda, numa corrente pra frente, se enche de esperança. Perdido por perdido, quem sabe aquele centroavante polêmico... bem, só Deus sabe.
Trinta e cinco minutos.
Jô ainda não pegou na bola.
Neymar e Philipe Coutinho começam a tentar chutões da intermediária.
Nada dá certo para o Brasil.
Paulinho e Daniel Alves apelam para o chuveirinho na área alemã. Mas do outro lado aquele exército disciplinado afasta todas.
Maldito Neuer, que não dá nem rebote.
Quarenta minutos. Quarenta e dois.
Pela esquerda, Marcelo dribla dois germânicos e alça a bola para a área.
Jô se livra de outros tantos zagueiros gradalhões e vê a bola à sua frente. É agora ou nunca.
Neuer corre atabalhoado para fechar o ângulo.
A bola quica à frente de Jô e quase lhe escapa do controle.
É ele e a bola. A bola e o gol. A bola, o goleiro e o gol.
O zagueiro vem inesperadamente por trás e consegue dividir.
A bola sobe, dançando com o efeito, bate no braço do atacante brasileiro e tira da jogada ao mesmo tempo o goleiro e o defensor.
É Jô e a bola. É Jô e o gol.
Ele está acostumado, tem faro de artilheiro. Aquela é a sua praia, ele sabe o que fazer. Sua reação é rápida. 
O chute é certeiro, como tantos outros.
A bola estufa as redes.
Fazendo justiça, finalmente. O Brasil ganha o direito à prorrogação e agora vai virar em cima dos amedrontados alemães.
O árbitro oriental começa a correr para o centro do campo.
Mas não.
Jô chama o juiz coreano.
Aponta para o braço. Faz sinal de negativo. Ninguém ainda entende nada.
Agora sim.
Acostumado às constantes discussões sobre fair play em sua pátria, ele sabe o que fazer nesses momentos.
Ele quer dizer que a bola bateu em seu braço, que o gol não vale.
A torcida presente ao estádio não se conforma.
Começa a xingar o próprio centroavante.
"Traidor! Miserável! Vendido!"
"Desgraçado!"
"Vai ver quando voltar ao Brasil..."
"Vai ser recebido com pedradas! Corrupto!"
O juiz volta atrás e anula o gol, para delírio dos adversários.
Jô sorri, feliz, com a consciência tranquila. Redimido, afinal.
O árbitro apita. Os alemães se abraçam, felizes. Pentacampeões. Dão a volta olímpica.
Por todos os rincões do Brasil, jornalistas e torcedores se unem em um único e inconformado coro:
"Caceta, Jô!! Isso era hora para fair play, seu p*** !!"


FAIR PLAY



Final de Copa do Mundo. Brasil x Argentina, pela primeira vez na história.
Estádio lotado. Arquibancadas fervendo de tensão.
O Brasil vence por um a zero ao final do segundo tempo.
O relógio está quase parando. O tempo escorre a passo de tartaruga.
O Brasil vence. Mas quem domina o jogo é o rival.
Vem para cima dos canarinhos como um rolo compressor. Bolas na trave. O goleiro tupiniquim faz um milagre atrás do outro.
Tensão. Desde o início do segundo tempo, o Brasil leva um sufoco histórico, encurralado em seu próprio campo.
Quarenta e um minutos da etapa final, e o zagueiro brasileiro derruba o principal atacante platino dentro da sua área.
O juiz, convicto, manda seguir o jogo. Não apita a penalidade.
O zagueiro, no entanto, chama o árbitro e confessa que realmente derrubou o adversário.
"Foi pênalti, sim. Pode marcar", garante ele. E a torcida amarelinha presente no estádio aplaude o fair play.
Bola na marca da cal. O dez argentino bate com categoria, sem chances para o arqueiro.
Um a um.
Recomeça o jogo, com os brasileiros desorientados.
A vitória histórica parece haver escapado.
Na prorrogação, os brasileiros serão engolidos pelos argentinos, que vêm jogando muito melhor. Até o líder do time está assustado.
Quarenta e seis minutos do segundo tempo. Começam os chutões em direção à área adversária. Sem nenhum objetivo, sem nenhuma tática.
Quarenta e sete.
Os rivais tocam a bola, tranquilos, aguardando a prorrogação.
Quarenta e oito minutos. Última volta do ponteiro, como diziam os antigos narradores do rádio.
O Brasil não tem mais pernas, comentam todos. Não tem mais jeito. Chuveirinho desesperado na área argentina.
Último ataque brasileiro. Na verdade, um contra-ataque. De-ses-pe-ra-do. Bola na área da Argentina.
Ela sobe, sobe muito alto, faz uma curva caprichosa e vai caindo, traiçoeira, fora do alcance do goleiro.
O centroavante auriverde invade a área, ganha do zagueiro na corrida, reúne todas as suas forças e se joga de encontro à bola.
Quase em cima da linha do gol, a bola bate em seu braço e entra.
Gol do Brasil. Os argentinos reclamam, inconformados. Foi gol de mão!
Mas o árbitro, soberano nas decisões, aponta o centro do campo.
Dois a um.
Não há tempo para mais nada.
O juiz apita o final da partida.
Brasil campeão do mundo. Em cima da Argentina.
Porém, há algo errado.
Nas arquibancadas, ninguém comemora.
O argentinos, porque perderam a Copa.
Os brasileiros, porque venceram com um gol de mão.
Em todo o país, as emissoras se calam. Jornalistas em silêncio, constrangidos pela falta de fair play do atacante brasileiro. Locutores, apresentadores, comentaristas, narradores, analistas, ex-jogadores, todos estão envergonhados. Ninguém sabe o que dizer.
"Onde já se viu? Que absurdo! Que falta de honestidade!"
"É um verdadeiro bandido! Um marginal! Um corrupto!"
"Ladrão! Uma desonra para a pátria!"
"Que vergonha! O que o mundo vai pensar de nós?"
A equipe brasileira se retira para os vestiários cabisbaixa, sem comemorar.
Apenas o zagueiro brasileiro que pediu o pênalti será recebido no país como herói da nação.
O país até se esquece que acabou de se sagrar hexacampeão do mundo, justo em cima da Argentina.
Um torcedor anônimo sai às ruas em uma capital do sul, gritando: "Ganhar roubado da Argentina é muito melhor!".
Quase é linchado. Se a polícia não tivesse chegado a tempo...
No Palácio do Planalto, o presidente brasileiro se prepara para pedir desculpas ao seu colega platino.
Sua voz até falha ao repassar mais uma vez o discurso.
"Como é que isso podia ter acontecido? É inadmissível!"
Justo num país que sempre foi tão rigoroso com a ética! Com o fair play...!
Ainda bem que não somos daquelas nações que sacrificam criminosos em praça pública.
Caso contrário... aquele maldito centroavante verde-e-amarelo não viveria para contar a história.